Um professor meu na Evidance, comentando dos livros que tinha sobre dança (ele estava convidando uma aluna pra passar um dia de atividades em torno do assunto), peço pra tirar uma cópia dos livros. A resposta dele: não. Por quê? Porque é antiético. Antiético? Ora, há profissionais que dependem da venda de livros para a sobrevivência: revisores, tradutores, diagramadores - e os próprios autores, naturalmente. Tentei argumentar rapidamente, pondo em xeque a qualificação de antiética à cópia dos livros - mas em vão. Não chegamos a detalhar o debate, mas ele foi, até onde eu lembro, a primeira pessoa que conheci empregando essa idéia de antieticidade da cópia. Uma pena.
Copio livros inteiros desde o início da graduação. Cada vez menos tenho comprado livros novos, buscando ao máximo soluções alternativas e baratas, desde as fotocópias propriamente ditas até livros usados. (Garimpando em um sebo no Rio, achei um exemplar de Lolita a apenas um real.) De 2008 até aqui, tenho vasculhado a net por livros digitalizados, e eu mesmo digitalizei alguns (parei por preguiça e pelo computador aqui de casa estar com o Windows 7, ao passo que minha multifuncional só é compatível até o Vista). Via de regra, é mais barato e cômodo: não tenho que gastar uma fortuna e ainda poupo o exemplar original de rabiscos e sublinhados, grande motivo de meu ódio contra esses imbecis que juram que estão prestando serviço a outros leitores - especialmente quando o livro riscado provém de uma biblioteca que não a deles.
Mas saiamos um pouco do terreno da ética e partamos pro jurídico. A Lei de Direitos Autorais do Brasil não é nada clara a respeito, ainda mais porque desconsiderou a transformação operada no compartilhamento de bens autorais com o advento da Internet (e a Internet já existia a plenos megabytes quando a lei foi promulgada). Essa transformação vale pra, virtualmente (!), tudo o que se produz e que possua conteúdo intelectual: livros, músicas, filmes, obras científicas e artísticas diversas. Mas consideremos apenas o caso em questão - a fotocópia de livros. Em uma entrevista, o professor de direito da FGV-Rio Sérgio Branco afirma: "Livro, por exemplo, a gente só pode xerocar pequenos trechos, para uso pessoal e sem fins lucrativos. Agora, o que são pequenos trechos? Alguns lugares determinaram que isso significa 10% do total, outros que é até um capítulo. Mas isso não está na lei. Fica, portanto, uma interpretação muito insegura, a ponto de, se a cada dia eu xerocar um capítulo, ao fim de um curto período, eu terei copiado o livro inteiro e, embora não tenha feito nada de ilegal, ao fim e ao cabo terei atentado contra o que a gente chama de o espírito da lei". Quer dizer, vira casa da mãe Joana. A lei é tão vaga (e, nesse aspecto, cruel) que um professor não pode tirar cópias e as distribuir pros alunos - não observando os hábitos da população mundial, acaba transformando todos em infratores. Não foi outra a premissa para a apreensão de uma porrada de cópias no serviço de xérox da Escola de Serviço Social da UFRJ, em 2010.
Nesse sentido, não posso deixar de recordar o seminal ensaio de Henry D. Thoreau, A desobediência civil. O texto foi escrito na prisão, após Thoreau ter sido preso por não pagar o imposto, alegando que o dinheiro arrecadado financiaria a guerra contra o México, então travada pelos Estados Unidos. A lei o obrigava a isso - do mesmo modo que a lei de direitos autorais nos obriga a não copiar (ou reproduzir, ou whatever) livros, por mais louváveis que sejam nossos objetivos. E por isso foi preso. Agora, se o "homem de bem" acha que está livre desse fado, leia só o seguinte trecho do ensaio: "Num governo que aprisiona qualquer pessoa injustamente, o verdadeiro lugar de um homem justo é também a prisão" (p. 30 da tradução de Sérgio Karam na L&PM Pocket, de 2007). Essencialmente, é isso o que afirmou o professor Sérgio Branco em sua entrevista.
Há controvérsias sobre se a desobediência civil se reveste de caráter ético ou político. Eu, pessoalmente, prefiro pensar que ambas as dimensões fazem parte dessa prática, sem necessariamente se confundirem ou reduzirem entre si. Seria, então, a fotocópia de livros uma forma de desobediência civil? Não tenho tanta certeza, já que a lei - e os lucros dos editores - continuam intatos. Existem licenças alternativas, como o Creative Commons, que a contornam sem a contradizer. Talvez algum programa coletivo de escaneamento e difusão de obras bibliográficas, aliado ao boicote a alguma grande editora careira (como a Jorge Zahar, aqui do Brasil), talvez funcione melhor...
Paremos de divagar, porém. Paremos e voltemos ao assunto inicial: a antieticidade da cópia dos livros. É errado copiar livros inteiros porque o trabalho investido em sua publicação (seja intelectual ou material) não é devidamente canalizado. Quem lucra com as fotocópias são as gráficas, não os autores e/ou editores. Eu realmente gostaria de saber de outros argumentos contrários, mas não consigo vislumbrar nenhum (posso incluir e comentar rapidamente em um post-scriptum, ou então elaborar outra postagem, se alguém me der a luz). Fiquemos, então, com este único argumento. E o analisemos devagarinho.
Primeiramente, me parece que, por trás desse raciocínio, deve haver alguma espécie de utilitarismo de preferências (1), segundo o qual os envolvidos no mercado editorial (excetuando o leitor) sairiam prejudicados. Em outras palavras, se um leitor prefere xerocar um livro, ele atropela o editor, tradutor, autor, revisor, diagramador, vendedor, enfim - ele atropela as preferências desses indivíduos, que seriam, no caso, ganhar dinheiro pra levar uma vida decente (pagando as contas, criando a família e - por que não? - dando um pulo rápido no cabaré). Portanto, estaria sendo antiético. Gosto bastante do utilitarismo de preferências pra concordar com essa bravata; com efeito, quem garante que o editor e o vendedor não lucrem horrores com sua mercadoria, restringindo o acesso a quem pode adquirir? Neste caso, a coisa se inverte: quem tem a preferência lesionada é o leitor, que até gostaria de adquirir uma obra bibliográfica e ressarcir seu autor pelos neurônios assassinados, mas nem sempre possui a grana.
A falta de grana acomete a maior parte dos estudantes no País, e grande parte deles (eu incluso) prefere assassinar o espírito da lei a tirar um zero na prova. Mas suponhamos que fosse outra a situação - que a maior parte pudesse comprar o livro nosso de cada dia, mantendo em fluxo o agradável ciclo de retorno das partes interessadas - o autor recebe seus direitos, o editor os seus, e o leitor, os seus. E, é claro, as bibliotecas públicas e privadas estariam com um acervo enorme e suficiente pra atender à demanda daqueles que não pudessem comprar. Mas mesmo assim eu gostaria de tirar uma cópia pra folhear, rasurar e deixar pra alguma eventualidade trágica (a perda do exemplar original). Isso seria errado? Seria errado que existissem gráficas pra fornecer o serviço? Ah, cada um que se vire pra xerocar o livro com sua multifuncional? Gente, do it yourself só funciona até certo ponto! Além disso, autores, editores e vendedores já não teriam o seu?
Alguns anos atrás, Stephen King disse que já havia matado árvores demais no mundo - e, com essa decisão, pararia de escrever (mentira, parou porra nenhuma). O que nos conduz ao problema do material empregado na impressão dos livros. É evidente que alguns exemplares são mais caros do que outros devido ao tipo de papel utilizado, a tinta, a tipografia e assim por diante. Fico pensando, por exemplo, por que eu deveria consumir livros de uma editora que publica livros a um valor absurdo? Vamos ficar somente com aqueles livros com signos predominantemente verbais, com poucas imagens além daquela da capa (se houver). Pois bem: O Mal-Estar da Pós-Modernidade, de Zygmunt Bauman, publicado pela Jorge Zahar, custa atualmente 54 reais. 54 reais por um maço de papel com menos de 300 páginas - e é bom que se enfatizem os NÚMEROS, deixando de lado as ANÁLISES seminais do sociólogo polonês. Se desmembrássemos o preço final do livro, quanto caberia ao autor? E ao editor? E aos funcionários que o prepararam? E o material, quanto consumiu de dinheiro? Quanto? How much? Wie viel? Hem, hem?
É doloroso constatar como livros no Brasil ainda são artigo de luxo. Meu professor poderia simplesmente alegar que possui um zelo ardente por seus livros, que não sai emprestando de qualquer jeito, que pretende conservar eles ao máximo. Haveria ainda a disputa por gosto (não sou tão cuidadoso com meus livros, por exemplo), mas eu mesmo a evitaria, uma vez que questões de gosto freqüentemente se afastam de questões de ordem prática. Agora, daí a alegar questões de ética é demais. Se copiar livros é antiético, então aceito de bom grado ser chamado de libertino ou sacrílego. Se copiar livros é ilegal, então prefiro assumir a prática do samizdat. Se copiar livros atenta contra as instituições políticas vigentes, então me tranqüilizo em me saber dissidente. Desejo sinceramente que alguém possa ganhar sustento por meio (e a partir) do mercado bibliográfico, mas desejo mais ainda que minhas necessidades (e as de muita gente) também sejam satisfeitas de modo não-argentário.
Há muitas coisas em jogo em minha atitude, claro. Estou supondo, naturalmente, que o leitor partilhe do mesmo pressuposto que eu - que a cópia de livros é aceitabilíssima para o uso pessoal, vedada a agiotagem do intelecto. Em todo caso, estritamente ético ou não (pois presumo que o argumento de meu professor de dança seja mais amplo do que um ponto de vista puramente ético), o argumento dele possui problemas. Quero algo ainda mais consistente do que isso pra tornar minha atitude condenável. Até lá, prosseguirei tranqüilo e calmo com os livros xerocados.
(1) Há uma crítica bem amarrada ao utilitarismo de preferências aqui, segundo a qual há problemas sérios em se considerar as preferências pessoais como ponto de partida para julgamentos de justiça social (que é um aspecto implícito deste texto). Mas ainda continuo com a argumentação de Richard Hare.
É doloroso constatar como livros no Brasil ainda são artigo de luxo. Meu professor poderia simplesmente alegar que possui um zelo ardente por seus livros, que não sai emprestando de qualquer jeito, que pretende conservar eles ao máximo. Haveria ainda a disputa por gosto (não sou tão cuidadoso com meus livros, por exemplo), mas eu mesmo a evitaria, uma vez que questões de gosto freqüentemente se afastam de questões de ordem prática. Agora, daí a alegar questões de ética é demais. Se copiar livros é antiético, então aceito de bom grado ser chamado de libertino ou sacrílego. Se copiar livros é ilegal, então prefiro assumir a prática do samizdat. Se copiar livros atenta contra as instituições políticas vigentes, então me tranqüilizo em me saber dissidente. Desejo sinceramente que alguém possa ganhar sustento por meio (e a partir) do mercado bibliográfico, mas desejo mais ainda que minhas necessidades (e as de muita gente) também sejam satisfeitas de modo não-argentário.
Há muitas coisas em jogo em minha atitude, claro. Estou supondo, naturalmente, que o leitor partilhe do mesmo pressuposto que eu - que a cópia de livros é aceitabilíssima para o uso pessoal, vedada a agiotagem do intelecto. Em todo caso, estritamente ético ou não (pois presumo que o argumento de meu professor de dança seja mais amplo do que um ponto de vista puramente ético), o argumento dele possui problemas. Quero algo ainda mais consistente do que isso pra tornar minha atitude condenável. Até lá, prosseguirei tranqüilo e calmo com os livros xerocados.
(1) Há uma crítica bem amarrada ao utilitarismo de preferências aqui, segundo a qual há problemas sérios em se considerar as preferências pessoais como ponto de partida para julgamentos de justiça social (que é um aspecto implícito deste texto). Mas ainda continuo com a argumentação de Richard Hare.
Um comentário:
Livros aqui são realmente artigos de luxo. Eles são vendidos a custo alto e nem todos têm condições de comprá-los. Nas instituições de ensino superior, é impossivel os alunos comprarem todos os livros que lhes são indicados. Isso fali qualquer um!
Se xerocá-los é anti-ético, então estou na ilegalidade há muito tempo!
Beijos.
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