sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Para além da natureza e da cultura


Este poderia ser um outro título para O Enigma de Kaspar Hauser. Ora, o que houve com ele não foi muito diverso do que ocorre com o resto das pessoas. Não pela privação absurda que sofreu – 16 anos trancafiado e sem contato com o mundo a sua volta – mas por representar um esforço em superar a dicotomia natureza/cultura, bastante valorizada no contexto europeu.

O que é o ser humano? O que nos torna humanos? Há 200 anos existe tal separação: por um lado, aqueles que defendem que a natureza, a biologia, os genes etc. determinam e/ou condicionam a construção de tal adjetivo; por outro lado, o conjunto de profissionais das ciências humanas opta por apostar na cultura como o ponto de partida para a experiência não tão fácil de se constituir um ser humano. E então, quem está certo sobre a habilidade dos quenianos de vencer em corridas de fundo pelo globo afora? Quem tem razão sobre a habilidade dos mongóis em tirar duas notas simultâneas da garganta? Quem tem razão a respeito do debiloidismo cada vez crescente em nossa época?

Penso que, se continuarmos nesse dualismo, pouco progresso será feito. Natureza e cultura são esferas diferentes, claro; mas para que opô-las? Uma forma de superar essa antinomia é adotar a idéia de que nós, seres humanos, somos por natureza dotados de capacidade cultural, que a seu turno nos permite debater mais acerca de nossa natureza, e assim até o infinito. Alguém pode objetar, evidentemente, que isso empobrece o debate. Eu vou na via contrária: é exatamente a recusa em decidir por uma dessas dimensões que poderemos apreciá-las melhor, esforçando-nos em evitar comentários pífios como o de uma jovem sobre Kaspar: “um verdadeiro filho da natureza”. Aarrgh!

Não, Kaspar Hauser não é um filho da natureza. Nem um filho da cultura. O “não” aqui significa “não apenas”; nec natura nec cultura – Kaspar Hauser é uma simbiose desesperada e teimosa de ambas. Foi com um atraso de 16 anos que ele pôde ensaiar uma compreensão maior de seus pares, o que certamente não foi confortável, já que ele chegou a preferir sua casa à festa oferecida pelo conde Stanhope. Mesmo assim, com o pouco de cultura que respirou, conseguiu atentar um pouco para a mesquinhez de seus pares, que insistiam em manter essa dicotomia (e que prolongamos até hoje); e, após sua morte, foi a vez de eles entenderem um pouco melhor a dificuldade desse homem: analisando o cerebelo dilatado e o cérebro degenerado, é provável que eles hajam chegado à conclusão de que a natureza do homem que tinha dificuldades em absorver a cultura de sua época e lugar foi, na verdade, tolhida pela brutalidade de um pai perverso e por essa cultura inconseqüente.

P.S.: Para quem tem um pouco mais de curiosidade sobre o personagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Kaspar_Hauser

Um comentário:

Anônimo disse...

Lázaro, amei este texto, muito interessante. Acredito que os dois lados erram feio ao estabelecer estas dicitomias. E este filme dá muitas discussões, e a sua foi interessantíssima. Parabéns, lindo.

Baú de traças