terça-feira, 20 de maio de 2014

O medo do amor livre

Já tive problemas com mulheres que têm (ou tinham) namorados ciumentos. Aconteceu várias vezes de eu as cumprimentar e, depois de um tempo – quando não em seguida – elas chegarem pra mim dizendo que eu devia evitar contato com elas. O que eu fazia? Dava um beijinho no rosto e um abraço. E eis que os imbecis, se sentindo ameaçados com uma saudação, pressionavam as parceiras para que me avisassem da proibição. Impressionante o quanto que essas mulheres agem diferente, dependendo das circunstâncias: quando estavam desacompanhadas dos respectivos, sem problema; quando acompanhadas, pareciam bicho do mato, com medo do predador voar em cima se alguém (leia-se algum homem) as cumprimentasse. O humor muda mesmo – independente de elas retribuírem o ciúme de seus parceiros ou não.
Que essa seja a constante – mulheres submissas a homens ciumentos – não é o tópico deste texto. Já não me surpreendo quando isso acontece; de tanto levar caldo eu já adivinho como proceder, e saco qual é a do cara. Agora, duas semanas atrás me acontece algo que me deixou de cu arriado. Estava eu no Azulão da UFRN, tinha acabado de fazer algo (não recordo agora exato), e então encontro uma professora e a cumprimento com um beijo no rosto. Aí chega uma garota, que eu tinha encontrado minutos antes no setor II (e também cumprimentado com o mesmo beijo), me chamando de beijoqueiro. Na hora eu repliquei algo sobre aquilo ser apenas um beijo, e que eu não faço nada com mulher alguma se ela não me der liberdade, acrescentando, de modo jocoso, que ela me desse liberdade e visse o que aconteceria. Ela continuou com a brincadeira, e aí a professora se saiu com algo ainda pior: pediu que eu botasse o pé no freio porque o marido dela era muito brabo e ciumento e poderia fazer algo comigo. Na hora, diante do choque, só dei um riso nervoso, como se tivesse entrado no espírito da brincadeira. Só que não. Pouco tempo depois, o riso cedeu lugar a um sentimento de raiva. Ora, até onde eu saiba, em nenhum momento dei em cima de nenhuma delas. Não faz sentido, a meu ver, soltar uma ameaça dessas nem em tom de brincadeira, caso a pessoa (eu ou quem quer que seja) não tenha paquerado com a professora sabendo que ela é casada.
Antes de eu argumentar propriamente a respeito do que aconteceu, desejo a essa professora e a essa aluna um pedido de desculpas, caso tenham entendido minha assertiva – “dê liberdade pra você ver” – como uma cantada. É aquela coisa: cada um é responsável pelo que diz, não pelo que o outro entende. Esse dito é simplista demais pro meu gosto, mas se ajusta bem na situação, pois parece que o que aconteceu foi isso: eu complementei o que tinha dito anteriormente – que não abordo ninguém sem que haja uma demonstração prévia de interesse (ou uma certa intimidade criada com o tempo e o convívio que permite algumas brincadeiras – o que é raro) – de uma forma acintosa, provocativa. Ocorre, entretanto, que o “dê liberdade pra você vê”, do modo como concebi, equivale a dizer “você não me deu liberdade pra te encher de beijos, não precisa se preocupar com isso”.
Agora passemos à análise do episódio propriamente dito. A estudante me recriminou por eu ser beijoqueiro. Como se ser beijoqueiro fosse uma coisa ruim, né, gente? Afinal de contas, toda mulher que passa por aí (ou pelo menos toda mulher que conheço) eu encho de beijo - ela, então, nem se fala -, porque eu tô cheio de energia pra dar! Francamente, a garota me conhece há quase cinco anos e só agora chega com essa ladainha? Ora, eu geralmente percebo quando posso cumprimentar com mais proximidade ou quando preciso manter distância. Ao que me parece, essa estudante parecia se enquadrar na primeira categoria; e eu, até onde me lembro, nunca morri de intimidade com ela pra ser esse “beijoqueiro” que ela tanto desprezou – sim, desprezou – em mim. No que me diz respeito, sei quando preciso manter distância ou quando posso me aproximar um pouco mais. Até então, eu fazia um meio-termo em relação a ela (como faço com a maior parte das mulheres); depois dessa desfeita, prefiro me afastar.
Consideremos, agora, a professora. Ela falou que eu me freasse, para que ela não precisasse chamar o marido dela, aquele ser bruto e ciumento. Ai, que medinha, né, gente? Eu paro pra pensar mais uma vez, meditando se eu tentei alguma gracinha com ela. A resposta, pura e cristalina: NÃO. Que fosse compreensível se eu ousasse dar uma cantada e ela me replicasse com a ameaça, beleza. Porém, se há uma coisa que eu detesto é ameaça gratuita. Como se eu não soubesse que ela é casada; pior, como se eu fosse interessado nela! Na quinta-feira última, encontrando-a na Biblioteca Zila Mamede, ela não deixou de notar a distância que tomei ao cumprimentá-la. Não entendi bem o que ela falou, mas parecia tomar o gesto como uma coisa positiva. Do ponto de vista dela, é claro - porque do meu não é.
Há mais de três anos, quase quatro, larguei a monogamia. Hoje em dia, não consigo viver dando exclusividade a uma única mulher (o pleonasmo é proposital). Não tenho vergonha de afirmar que sou não monogâmico quando a conversa se aprofunda no tema das relações amorosas ou quando tô paquerando com alguma garota; estou em um relacionamento aberto há mais de um ano, e muito grato a minha companheira pela oportunidade que ela me deu de estar comigo. Em minhas conversas, não é difícil eu falar um ditado: cavalo amarrado também pasta. O problema, contudo, é que as pessoas distorcem o significado do advérbio na frase, transformando-a em algo completamente diferente: cavalo amarrado SEMPRE pasta. Aí eu me pergunto: desde quando um cavalo amarrado precisa pastar fora o tempo inteiro? A que se deve o erro de interpretação desse ditado?
A resposta, a meu ver, é apenas esta: o medo. O ser humano tem a mania feia de se afundar numa vida de hipocrisia, mentiras e comodismo. A monogamia enquanto forma privilegiada de relacionamento afetivo é a grande mentira da história da humanidade, porque preconiza uma coisa e oferece outra. A monogamia, tal como a conhecemos, amarra os indivíduos, deixando-os conformados a um estilo de vida que não lhes dá muitas vias de ação; meu corpo e meu afeto, supostamente, devem ser dados a uma única pessoa. O problema é que, quando a pessoa vive uma existência hipócrita, mentirosa e conformada, existe uma possibilidade de ela se encontrar nesse estado por puro medo. Quando o medo se instala e toma conta, a probabilidade de a pessoa procurar outra coisa é tanto menor quanto maior é o medo que possui.
A única forma de combater esse medo é aderir ao amor livre. Peguemos essa definição de uma postagem do Café Feminista: “Amor livre é uma proposta revolucionária que questiona os modelos disponíveis de amor construídos socialmente e historicamente, possibilitando que todxs possam criar novas formas de se relacionar, visando interações não-hierárquicas e de cooperação mútua – na contramão dos valores capitalistas de possessividade e exclusividade. Não existe um formato definido de amor livre, a ideia é justamente ter liberdade para construir novas relações com diretrizes próprias, o único princípio orientador do amor livre é a busca pela solidariedade ax próximx, o que explica sua origem entre pensadorxs socialistas e libertárixs.” Em contrapartida ao modelo monogâmico, que admite apenas pares fixos e hierárquicos (alguém tem que dominar, e esse alguém quase sempre é um homem), no amor livre o que está em evidência é a necessidade de construir relações afetivas solidárias e horizontais. Não havendo um modelo padrão para o amor livre, podemos praticá-lo aderindo ao relacionamento aberto, poliamor ou relação livre – e, inclusive, à monogamia. O amor livre, segundo compreendo, é menos um modelo de relação amorosa do que uma postura ante as relações amorosas existentes. É perceber que existem tantas formas de se relacionar quanto seres humanos que as adotem, mas é, sobretudo, se esforçar para que os seres humanos sejam livres para se relacionarem e abracem a liberdade do outro nos relacionamentos, tomando-a como componente fundamental no estabelecimento e manutenção dos laços produzidos. Apropriando uma ideia do filósofo Cornelius Castoriadis ("A Instituição Imaginária da Sociedade"), acredito que a ideia de liberdade no amor livre não é a de que minha liberdade acaba quando começa a do outro, mas que ambas começam juntas. Significa que um adepto do amor livre consequente faz crescer sua liberdade em conjunto com a do outro; se apenas eu sou livre, e se minha liberdade se faz às custas da do outro, então não posso abraçar o amor livre. Se a liberdade do outro é fundamental para minha própria liberdade, então se torna fácil entender que um adepto do amor livre não saia dando em cima de qualquer um. Não é porque o amor livre passe longe do casamento e das leis que o regem que eu vou desrespeitar um arranjo já feito. Não é porque não sou monogâmico que eu pretendo me relacionar com mulheres que já têm namorados ou maridos; se eu me valho do amor livre como prerrogativa para atropelar e minorar relações afetivas já existentes, algo está muito errado.
O verdadeiro significado do ditado “cavalo amarrado também pasta” passa, então, a ser não a mera transgressão da monogamia, mas a constatação de que existem muitos problemas com a monogamia (1). Falei anteriormente que eu não posso usar a não monogamia como desculpa para me envolver com mulheres com namorados ou maridos. Não posso ser omisso e afirmar que nunca fiquei com mulheres nessas circunstâncias, mas posso afirmar, seguramente, que não é o tipo de relação que desejo como rotina afetiva. Em primeiro lugar, porque preciso respeitar a escolha dessas mulheres (mesmo que elas não se sintam bem no relacionamento em que estão); em segundo lugar, tornar isso uma constante não me faz menos hipócrita do que as pessoas que acuso; em terceiro lugar, o envolvimento com uma mulher numa relação monogâmica implica a adoção de uma rotina marcada pela necessidade de se esconder - e eu, definitivamente, detesto viver às escondidas. “Cavalo amarrado também pasta”, no fim das contas, é a constatação de um fato: existem seres humanos que não se satisfazem com a monogamia. A maneira como as pessoas lidam com esse ditado – pelo medo ou pela afirmação – definirá muito de sua postura nos relacionamentos que adotarem.
Portanto, depois do caldo que tomei dessa professora e dessa aluna, tomei uma decisão: não compartilho meu afeto com quem não merece. Que uma seja casada e que a outra me ache um beijoqueiro não deve ser um impedimento para que eu deixe de saudá-las como eu gostaria, mas a petulância de suas atitudes. Se elas acham que, com essas brincadeirinhas estúpidas e chantagistas, elas me coagirão pelo medo e pela vergonha, estão completamente enganadas. A força do amor livre consiste em afirmar e respeitar a liberdade em conjunto com um ideal de solidariedade e carinho, não com o medo e a aversão. Elas, de seu ponto de vista, talvez tenham me proibido de cumprimentá-las com um beijo; eu, de minha parte, deixei de usar esse gesto como afirmação de minha liberdade de decidir com quem posso compartilhar meus afetos. Não compartilho meu afeto com quem não merece, mas sobretudo não compartilho meu afeto com quem não faz minha liberdade crescer e impede que sua própria liberdade cresça junto.  Se ser beijoqueiro é uma coisa ruim, meus pêsames. Distribuir afeto por meio do beijo é bom e eu gosto.

 (1)   Passo ao largo de discussões de gênero por dois motivos: a) tenho poucas leituras no assunto; b) não estou convencido de que o modelo monogâmico a que me refiro seja exclusivamente heteronormativo, embora a monogamia heteronormativa seja predominante. Não basta não ser heteronormativo para romper com a monogamia; é necessário acolher a liberdade do outro em sua inteireza, incluindo aí sua orientação sexual. O amor livre não é privilégio de heterossexuais, homossexuais, bissexuais, cissexuais, transexuais; é uma meta a ser perseguida por qualquer um.

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