Os pintas viraram pauta do dia após uma série de eventos nos últimos tempos. Foi um momento oportuno para a sociedade natalense fazer coro a um discurso de ódio que tem se alastrado no país e no mundo – basicamente, o ódio ao diferente. Naturalmente, tem quem se aproveite disso pra engrossar o caldo: o blog do BG apresentou a manifestação que ocorreu no último sábado como “noite de terror”. Sim, noite de terror, minha gente: as classes média e alta se vêem, cada vez mais, próximas de grupos engendrados pela desigualdade social. Elas não têm medo, pura e simplesmente, do perigo de assaltos e brigas de gangues promovidos pelos pintas; o horror que sentem é, na verdade, resultado talvez de uma conjuntura socioeconômica no Brasil, conjuntura essa que contribuiu para uma redução das disparidades dos estratos sociais. Os pintas se beneficiaram dessa conjuntura, se não pelo aumento do poder aquisitivo graças a programas de assistência, pelo menos pela onda que arrastou a população mais carente para lugares como o Midway; mais do que em outros shoppings da cidade (talvez não do que no Norte Shopping, que não conheço), existe uma presença maciça de pessoas com poder aquisitivo mais baixo. A noite de terror é, mais simbólica e efetivamente, a noite da perda progressiva de privilégios.
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Túlio Madson escreveu um texto aqui, apresentando sua versão do personagem pinta como algo oposto ao playboy. Ele esclarece, em um dos comentários, que a dicotomia foi proposital. Eu, de minha parte, prefiro ver o pinta como o outro do playboy. Não a outra face de Janus, mas outra personificação de outro deus: Hermes. Como bem sabemos, Hermes era o deus grego da comunicação e do comércio – mas também dos ladrões. Ladrões e comerciantes precisam de um pouco de lábia pra conseguir o que desejam, disso sabemos; o sucesso de suas atividades depende da abordagem que realizam. Assim o são playboys e pintas; com efeito, uma das características marcantes de ambos os grupos é a malandragem, a dissimulação e o papo reto. E eu resistiria muito a traçar maiores divisões – por mais que conte a origem social deles, o vocabulário e a escolaridade, tem toda uma cultura de ostentação, drogadição e desamparo. Ostentação, evidente, das vestimentas e de todo um poder que, assumidamente, possuem diante de seus pares; mas o consumo de drogas lícitas e ilícitas (raiz recorrente das brigas de que tanto participam), aliado a uma estrutura familiar frágil, só os torna dignos de execração. A diferença é que, via de regra, um playboy (ou os pais) pode pagar um advogado.
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Se, por uma necessidade terapêutica ou mera satisfação de curiosidade intelectual, algum psicanalista (freudiano) precisasse analisar Natal, lanço minha proposta visivelmente vagabunda e prêt-à-porter. Já temos os pintas e os playboys. O que falta para fechar o sistema psíquico da sociedade natalense, senhores? O homem de bem! O playboy, bonitão, bem apessoado e sua camisa pólo, seria o consciente. O pinta, por sua vez, com seu visual agressivo e bermudão Cyclone, seria o inconsciente. E, pra mediar toda a bagunça psíquica e botar moral (epa!), colocaríamos o homem de bem – para dar a devida orientação ao playboy, de modo a não sair por aí cometendo excessos (nada demais – apenas não beber tanto, não discriminar tanto os pobres, não descer a mão na mulher que lhe recusar um beijo) e, ao mesmo tempo, desencorajá-lo a buscar semelhanças com o pinta, recalcando-o em sua psique – muito embora o playboy arranje uma grana extra e consiga uns papelotes de cocaína pra fazer inveja ao pinta, o qual, como o recalcado, fará eventualmente seu retorno. Mas peraí: não foi isso o que aconteceu no Midway?
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Teve bastante desavisado, nas redes sociais, alardeando que a maior parte dos moradores de bairros como Mãe Luiza, Felipe Camarão e Rocas não é de pintas. Não se vestem como pintas, não agem como pintas. E eu me pergunto: por quê? Digo, por que disseram isso? Ora, o grande problema não é um desconhecido afirmar algo sobre a realidade de um lugar que não conhece, ou de alguém de uma classe social mais abastada, que trabalhe nesses bairros, venha a defender a população. O pinta influencia muito mais do que os moradores de lá desejam. O grande horror de uma mãe é que o filho desça na Ecologica pra comprar roupas de marca, saia abrindo os braços e abanando a bunda no meio da rua, faça “hang loose” com a mão e vá ver Grafith e pegar umas boyzinha, de rocha mermo! O mesmo temor vale pra filha, vestida de shortinho e saindo pros bailes funk (*) descendo até o chão e paquerando com esses caras. E não é nem mesmo necessário que os jovens consumem mesmo o estereótipo de pinta, afundando-se no consumo irrefreado de drogas; afinal de contas, um dos sinônimos pra pinta é maconheiro (1). O imaginário pinta é forte o suficiente para deixar suas marcas nos moradores, depurado de alguns comportamentos mais visivelmente agressivos. É, superego: tem muito cidadão de bem por aí vivendo a salário mínimo e parcelando as roupas da Ecologica no cartão.
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O “protesto dos pinta” marcado no Midway tinha, então, diversos motivos para malograr. Primeiro, a falta de apoio generalizado da população – quem é que iria apoiar o direito dos pintas de irem e virem dos xópis cêntis? Acrescente-se a isso a inserção da violência lá no Midway, que não só ricocheteou em quem não era pinta mas mostrou, claro como água, a importância da desigualdade social e econômica como mola propulsora do capitalismo. Devido a isso, o propósito do protesto foi, de cabo a rabo, contraproducente. Na verdade, a própria idéia de um protesto pelo direito de consumir (que se insinua sutilmente no direito de ir e vir) é o sintoma de um desespero social, de uma sociedade que não sabe lidar com as próprias mazelas (ou melhor, baixa o porrete e fica por isso mesmo). Tá havendo uma histeria coletiva porque alguns membros da sociedade não podem ostentar e sambar na cara da desgraça alheia. Se há mesmo a necessidade de um protesto pelo direito de consumir, não seria mais interessante acabar com isso de um segmento específico de uma classe social e convidar toda a classe para ir ao shopping? Garanto que faria uma força enorme frente ao animus purgans dos homens de bem, ainda mais quando o próprio shopping tem uma arquitetura que facilite e estimule o consumo dos menos favorecidos. Não é isso que desejam? Protestar pelos pintas e playboys é dar um tiro no pé.
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O pinta é, finalmente, um sujeito malcompreendido pela direita e pela esquerda. Enquanto a direita prossegue com seu programa de higienização ideológica e física, pintando (!) o pinta como um personagem imundo – o pinta-cocô –, a esquerda penetra na periferia com o objetivo de dar-lhe uma oportunidade de largar seu estilo de vida. O pinta, de seu lado, desafia cínica e obstinadamente a ambos, na medida em que está longe de ser tão sujo assim e, ao mesmo tempo, nem um pouco interessado na emancipação social sua e de seus pares. A direita se frustra por não conseguir sufocar o pinta como gostaria, ao passo que a esquerda se desilude com eventuais fracassos de estratégia. Diria mesmo que desafia até os sociólogos pois, por mais que se associem em grupos (gangues), estão mesmo é querendo o seu. Cada qual com seu cada qual. E isso, no fim das contas, torna difícil a persuasão de que ele está errado. Ele não liga simplesmente pro certo ou pro errado, liga pra viver sua vida intensamente, carpe diem levado até o fim. O pinta é um Peter Pan delinquente (não seria isto uma redundância?), com suas angústias, incertezas, um horror vacui ao envelhecimento e notável insolência diante do status quo. Tá tocando o foda-se pra todo mundo.
(*) Realizando uma última revisão, acabo de achar um excelente texto sobre o papel do funk ostentação nos eventos recentes envolvendo jovens (negros, majoritariamente) da periferia. É longo, mas a leitura recompensa.
(1) Sou abstêmio, e não vejo graça nenhuma no consumo de drogas, lícitas ou ilícitas. Agora, ainda que se legalize a maconha no Brasil pra uso recreativo e se tire o estigma do uso dessa droga a longo prazo (ou a curto prazo mesmo), restam as demais drogas e o problema que provocam não apenas aos pintas, mas a quaisquer pessoas envolvidas direta ou indiretamente (namoradas de traficantes, familiares, amigos mais ou menos próximos que, usando ou não as drogas, invariavelmente acabam sofrendo as consequências por parte dos usuários).
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