segunda-feira, 9 de junho de 2008

Magritte e Russell no Dia dos Namorados

Umberto Eco afirma que só há signo se ele puder mentir. Controvérsias à parte, não me parece difícil ele ter chegado a essa definição após contemplar uma obra de René Magritte, qual seja: A traição das imagens. A mensagem é, digamos, simples e direta: Isto não é um cachimbo.



Imagens, mentira, traição... No Dia dos Namorados, costumamos desejar as primeiras, contanto que não remetam às duas últimas. Do jeito que nossos desejos entram em conflito, a doçura nesse dia (como nos outros 364, 365 dias, como neste bissexto) é pouco provável. Ora, que será o ciúme, senão um costume - de muito mau gosto - de evocar o medo de certas imagens remeterem à mentira, à traição?

Janeiro agora, um cara fechou a cara pra mim, por cumprimentar a mulher dele com beijos no rosto (sou um pouco afetivo, sabe?). Pouco tempo depois, uma conhecida minha pediu que não a beijasse, já que o namorado também fechou a cara. Mais um tempo passado e uma guria com quem teclava soltava as farpas ao ler alguma postagem minha no Orkut que fosse suspeita. E, recentemente, uma amiga se queixava pro seu namorado hospedar uma ex, fugida de Roraima sob ameaças de morte. Minha interpretação dos fatos? Para os dois primeiros, susto seguido de certa raiva, fermentando durante uns dias. Para o terceiro, susto e raiva maiores ainda assando meus miolos, a garota não ficando comigo não só pelo veneno infrutífero, como também pela antecipação amarela do abandono (1) - e eu notando a incoerência entre seus gestos verbais e corporais (o corpo queria, mas até dizer não vacilou direto). Para o quarto (e, definitivamente, não o último), o vislumbre faiscante da chantagem emocional, a garota pedindo que o companheiro ajudasse a amiga sem usar o apartamento para isso, à custa de negativas, choro e falta de apetite; como se caridade viesse após o capricho...

Outra abordagem do ciúme vem dum fenômeno algo correlato: paixão. Porém, enquanto a paixão constrói a imagem do objeto - ou, se preferir, a pessoa - amado, o ciúme, julgando protegê-la, destrói. Ainda assim, não é de se espantar que ciumentos e apaixonados sejam, noutra análise, medrosos ou sem muita autoconfiança: a glicose do apaixonado serve de pincel não só para desenhar a pessoa amada, mas para que esse desenho o estimule a superar o pavor iminente; ao passo que o ciumento, tomando fel por néctar, se contorce em vertigens nauseabundas, denunciando o temor de aquela mesma imagem abandoná-lo.

E eu, escrevendo ansioso para eles, apaixonados e - principalmente - ciumentos. Isto não é um cachimbo... Não, amor, as coisas não são bem assim... Ai, eu não acredito no que tô vendo, só pode ser mentira (2)...

Você me pergunta se estou solteiro. Digo que sim. Responde que eu arrume alguém pra compartilhar esse dia (e os 364, 365 deste bissexto) e curtir a vida, ao invés de meditar a desgraça dos outros. Treplico o seguinte: já procuro alguém faz quase três anos; graças à vida que levo e os amigos que tenho, posso afirmar que curto a vida na medida do possível e sem lamentar histericamente os momentos desperdiçados; se há um motivo em pensar no estrago que o ciúme dos outros provoca, é exatamente em evitar que eu seja motivo desse zelo destrutivo, e - o mais difícil - impedir que eu, em algum dia de minha vida, submeta uma garota a humilhações dele advindas.

E, no entanto, é tão duro nutrir tais esperanças. Dou graças a Deus por haver descoberto Bertrand Russell, personagem que não sabia se era ateu ou agnóstico. Não creio que relacionamentos abertos remediem a situação - Russell era defensor árduo do "amor livre" (3) -, mas não me canso de lembrar uma sentença dele, que consegue ser maestralmente concisa e instrutiva: "Rapazes e moças deveriam aprender a liberdade de seus companheiros do outro sexo; dever-se-ia fazer com que compreendessem que nada dá a uma criatura humana direito sobre outra, e que o ciúme e o sentimento de posse matam o amor." Em meio a essa traição melodramática das imagens no Dia dos Namorados, onde certos indivíduos enxergam cachimbos demais - isto é, uma marca de batom, aquele perfume que ela detesta, um CD de Marisa Monte com dedicatória dum amigo; tudo isso com aquela dose de chilique fundamental em momentos assim -, valeria a pena ganhar de presente uma roupa com essa sentença...

(1) Alguns dias mais tarde, me confessou - mais amarela ainda - que tivera medo de se arrepender; talvez eu a esquecesse pura e gratuitamente... Depois que fiquei um pouco a par de sua vida, tive o alívio de não ter chorado pelo leite que derramou...

(2) Eu, pessoalmente, espero que seja. Ou melhor: que não aconteça. E termino esta nota esperando pelas divagações do/a leitor/a.

(3) Pleonasmo em termos, pois não há amor sem liberdade.

Nenhum comentário:

Baú de traças