terça-feira, 22 de julho de 2008

Cotas e ensino superior: polêmica (de novo e até quando?)

Já faz algumas semanas que o PL 546/07, da senadora Ideli Salvatti (PT-SC), foi aprovado. Agora, no mínimo 50% das vagas irão pra estudantes de escola pública, e haverá recortes étnicos pra permitir o acesso de negros e indígenas ao ensino superior. Ora, que legal, num contexto de incertezas políticas - uma herança secular de discriminação sócio-econômico-racial, o REUNI e um ensino básico desolador -, vamos colocar gente de etnias menos favorecidas pra virar doutor, médico e filósofo(1)!

Mas vamos aos problemas. O primeiro deles é a legitimidade da estratégia de cotas por si mesma. Há quem defenda, alegando o passado dos afro- e indodescendentes brasileiros; outros se posicionam contra, já que as cotas indicariam (quer dizer, indicam) uma suposta (quer dizer, uma efetiva) desvantagem de negros e pardos em relação aos brancos. Bom, estou sendo generalista, assumo; tem um terceiro grupo, que não é necessariamente de indecisos, e sim de posições bastante heterogêneas. Me encaixo nele, porque penso nas cotas como um paliativo, embora tenha dúvidas a respeito dos critérios para sua aplicação.

Passemos, então, a eles. Suponhamos, por um momento, que ninguém fará objeções etnicistas, racistas ou sócio-econômicas. Todo mundo - negros, brancos, índios, pardos, orientais, descendentes de alguém da Ilha de Páscoa - vai apoiar bravamente a política de cotas (como paliativo, bem entendido). Os governantes e a iniciativa privada, aliados à vontade ferrenha da sociedade em ver um país melhor, não pouparão esforços em implementá-la. Que fraseologia cínica, verdade? A verdade é que, na conjuntura atual - e na ideal também, creio -, a classificação dos contemplados é, no mínimo, inconsistente. Como definir um negro, um índio, um branco, um oriental, um indefinível?

Já tô até vendo a algazarra. Cientistas sociais e antropólogos preferirão aspectos socioculturais pra classificar as pessoas, ao passo que biólogos e engenheiros genéticos buscarão na carne a etiqueta identitária. E nenhum deles vai conseguir puxar a sardinha pra brasa. Primeiro, há o fenômeno do branqueamento - e, por que não incluir?, do enegrecimento - ideológico, gente botando a culpa na cor da própria pele ou cabelo(2); segundo, porque cada etnia possui particularidades genéticas que são decisivas na criação de políticas públicas para insumos farmacológicos, por exemplo. De resto, o critério previsto no PL é o do IBGE: será considerado negro, índio ou descendente de alguma dessas etnias o indivíduo que se declarar como tal no censo.

É aí que mora o problema. Várias ONGs têm criticado a classificação do IBGE quanto à etnicidade dos entrevistados, por ser muito imprecisa. Até onde sei, os entrevistadores não podem interferir na coleta desses dados; tipo assim, se um empresário de cor branca e manifestamente racista disser que é negro, o local na ficha destinado a isso tem que estar devidamente preenchido, confirmando a cretinice do sujeito. Aliás, qualquer oportunista pode fazer isso, se assim desejar; EU, que nunca me considerei negro, embora reconheça e não esconda minha ascendência africana - ainda mais natural de Salvador -, posso pedir pro entrevistador marcar, em minha ficha, que sou negro e pleitear a cota com o adicional do recorte étnico, já que estudei quase toda a vida em escola pública. Sem contar as várias vezes que já vi alguém se declarar negro, quando num primeiro momento eu e muita gente presumiríamos ser multiétnico (como está em meu perfil do Orkut).

Uns meses atrás, um professor da UFRN, Alípio de Sousa Filho, declarou num curso de extensão que tô freqüentando: "mestiçagem ou barbárie" (sem defender posições de ignorância à história do Brasil nesse sentido). Não sei se seria tão radical assim, mas o bordão se aproxima um pouco do que penso ser a realidade sócio-étnico-econômico-cultural-etc. por estas terras vastas. O problema é que creio que, se fulano ou sicrano deseja adotar tal ou qual identidade étnica, e tem razões consistentes pra isso, por que não colaborar? Por agora, um pouco de paciência e ver se as cotas serão implantadas...

(1) Por que não?

(2) Mainha não é lá tão braaaaanca assim, ainda que o suficiente pra virar um pimentão se tentar pegar uma cor ao sol. Esse era o resultado dermatológico da discriminação que ela sofria em Salvador, devido à tentativa dela de minimizá-la.

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