sexta-feira, 25 de julho de 2008

Pirulito e bandeira: 121 anos de esperanto

Acabo de ler uma instrutiva entrevista com Umberto Eco acerca do esperanto e temas correlatos (notadamente o plurilingüismo). Mais um material que acrescento a minha memória pessoal, intelectual, política, lingüística e mesmo filosófica. Ora, que é o esperanto, senão o esforço de sair dum bairrismo cultural, cujas muralhas têm entre seus componentes a argamassa da língua?

A primeira língua estrangeira que comecei a aprender foi o inglês, oferecido na escola em que estudava em Salvador. Achava bacana, uns livrinhos coloridos, eu agoniava mainha pra comprar o material e acompanhar bem as aulas. No entanto, a primeira língua estrangeira que comecei a aprender de livre vontade foi o esperanto; aos onze anos, folheando uma revista espírita e conferindo o catálogo de livros ali, avistei uns títulos esquisitos, pedi pra mãe me dizer que língua era aquela. “Assim que tiver um curso de esperanto, me avise!”.

Foi plantada a semente nessa hora. Houve um curso no centro espírita que mãe trabalhava, segundas-feiras à tarde; não logrei (1) continuá-lo, porque o horário coincidia com as aulas escolares que estavam por iniciar. Mas eu regava de vez em quando, folheando a apostila; no ano seguinte (2), comecei os estudos autodidatas de inglês e freqüentei um curso básico (bem básico mesmo!) de francês; já em 2001, começava o alemão... Entrando no CEFET, tive contato com o espanhol, ao mesmo tempo que praticava os outros idiomas mencionados com os estudantes intercambistas, melhorando substancialmente minha competência lingüística e a sensibilidade cultural. Enfim, em 2004 voltei a ter um contato mais estreito com o esperanto, contatando os membros da PEA (Associação Potiguar de Esperanto); fiquei por uns tempos indo lá, mas já não vou lá desde 2006, acredito. Só que o contato com a língua internacional continua na memória, cantarolo La Espero de vez em quando, a qualquer momento posso ler um livro em esperanto sem grandes dificuldades.

E, no entanto, existem dois problemas que me incomodam. Um deles é a recepção da idéia de língua internacional por parte do grande público. Acham que isso é idiotice, que o esperanto é uma língua morta, pois fracassou em sua tarefa de se fazer universal, e vêem com bastante ceticismo a democracia lingüística. A esses desavisados, pergunto: que língua morta é essa que conseguiu, em quase 121 anos de existência, adquirir 2 milhões de falantes? Que língua morta é essa, de sintaxe simplíssima e vocabulário aglutinante, otimizando a aprendizagem tanto em termos econômicos quanto lingüísticos e culturais (e em quais termos mais, meu Deus)? Que língua morta é essa, cujo criador passou uma fome miserável para difundi-la, e não se entregou a uma vaidade personalista e fútil, arrogando-se o direito de criador, preferindo se intitular o iniciador da Internacia? Uma tal desinformação só pode ser resolvida, entre outras coisas, com uma leitura adequada do Manifesto de Praga.

O segundo problema está relacionado às dissensões internas do movimento esperantista. Um dos sintomas dela é a saída de membros vários, como o grupo que criou o Ido, língua artificial que herdou muito da gramática esperantista. Mas o que me preocupa sobremaneira é a atitude dos indivíduos esperantistas diante das línguas ao redor do mundo e de sua própria língua. Será que o desejo de meu xará tem sido bem correspondido? Duvido muito.

Me deixem explicar melhor a situação. Quem tem um mínimo de informação sobre o esperanto sabe que um de seus pontos é a democracia lingüística: permitir e possibilitar a escolha ou não de um idioma qualquer, apreciar seus dialetos, e assim por diante. Tudo isso foi maestralmente sintetizado no Manifesto de Praga. Só que não é bem o que acontece. Ano passado, sem ter algo de interessante pra fazer na net, fui procurar meu nome completo no Google e ver quantos resultados saíam. De repente, me deparo com uma postagem minha num grupo de discussão de esperantistas portugueses, um deles desmontando ela. O contexto era mais ou menos esse: na lista de esperantistas brasileiros do Yahoo!, alguém abriu um tópico anunciando que o gerúndio havia sido proibido nos documentos oficiais do Distrito Federal. “Que diabo é isso?”, pensei. E comentei uma outra postagem dentro desse mesmo tópico, afirmando que o cara tinha sido preconceituoso com o gerundismo (alvo do decreto que proibia seu uso nas repartições públicas do DF), alguns tópicos de lingüística e tal... Pois bem: eu encontro minha postagem destrinchada por um filólogo português que, entre outras coisas, tem a proeza de comparar o uso da língua por uma criança à fotossíntese de uma árvore (3), que não sabe biologia, bem como deduzir, a partir de um comentário duvidoso meu, que eu sabia zero de literatura e filologia. E ele se diz esperantista, me chama de analfabeto por eu ter escrito em internetês e o escambal. E o ideal da democracia lingüística, onde está? Na lata de lixo da memória dele, suponho; primeiro por desconhecer minha experiência com os idiomas, segundo – o mais importante – por não se sensibilizar com o fenômeno do internetês que, queiramos nós ou não, não pode ser mais negligenciado do que já o é. Além disso, se sou mesmo um analfabeto, por que diabos consigo escrever esta postagem numa linguagem padrão – com os devidos desvios da gramática herdada de Portugal, já que sou brasileiro e minha realidade lingüística é outra – e no internetês e entendes ambas, ao passo que o portuga se enrola pra entender umas poucas palavras minhas? É de fundir os miolos!

Eu hem... Acho bom parar de espernear e sair por aí espalhando o aniversário do esperanto. Era bom eu pegar uma bandeira, amarrar ao pescoço e ir chupando um pirulito daqueles que pintam a língua, e mostrar a minha pintada de verde pra quem tirar onda. Putz, que criancice! Bom, só me resta paciência e vergonha na cara pra continuar a difundir e aperfeiçoar o esperanto. Desperdiçar um esforço árduo como o de Zamenhof é perigoso, ainda mais nesse 2008 proclamado pela UNESCO o Ano Internacional das Línguas.


(1) Que palavreado difícil, no meio dum registro coloquial da linguagem, não é mesmo?

(2) 2000.

(3) “A utilização de uma língua é tão fácil que até uma criança de quatro anos o faz com correcção, e tão difícil que muitos adultos não falam nem escrevem com um mínimo de correcção a sua língua natal. Acrescente-se ainda que a aprendizagem de uma língua estrangeira é dos processos mais complexos que existem. Além do mais, a criança fala a língua, mas não reflecte sobre ela; assim, a criança usa a primeira pessoa do pretérito perfeito simples, mas não sabe porque a usa. Tal como uma árvore faz a fotossíntese, mas não sabe nada de biologia”. Na hora que ele escreveu este parágrafo, imagino se ele pensou num detalhe: uma coisa é a árvore não saber o porquê de sua fotossíntese, mesmo porque uma árvore não possui consciência como entendemos ser uma consciência, seu ser-árvore não lhe permite refletir sobre a fotossíntese; outra coisa
diferentíssima é uma criança não saber por que usa tal ou qual modo, tempo ou pessoa verbal, mas – após um processo adequado de educação – vir a saber isso com um pouco mais de maturidade psíquica e intelectual. O artigo dele se encontra aqui.

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