segunda-feira, 28 de julho de 2008

Desgraça e emancipação na sola do pé

Já li, vi e ouvi falar de um bocado de propagandas, doenças e curiosidades várias sobre calçados. Gente escalando penhascos, tomando sol na praia, as colunas tortas de madames em salto 20 e feridas por alergia a tinta de chinelo: não é disso que quero tratar. Se existe um item de vestuário que enche meus olhos, é o calçado – meia, tênis, sandália, papete, alpercata; de vez em quando, passo pela vitrine da Meggashop e conferir o mostruário, coçando a mão para não comprar: também não é isto que me interessa. Meu ponto de partida é outro: uma entrevista no Programa do Jô com um imigrante vietnamita, dono da Goóc – uma empresa de calçados.

Comecemos, no entanto, por outra parte: Universidade Stanford. Um aluno lá, ex-atleta de corridas de fundo, pensou em criar tênis esportivos com mão-de-obra barata do Japão. Isso foi mais de quarenta anos atrás. Hoje, além de tênis, uniformes e contratos com jogadores de futebol, a Nike fatura uma nota preta com quinquilharias, desde relógios até canecas. A sede é nos EUA, mas é a subsidiária em Taiwan que contrata empresas pela Ásia para o fabrico dos produtos – e, como já li e ouvi falar várias vezes (e não só com a Nike), mão-de-obra barata é eufemismo para exploração subumana do trabalho, especialmente o infantil. Quer dizer, nenhuma novidade a acrescentar ao que a história nos mostra: o homem pisando noutros homens pra tentar subir na vida – Phil Knight, até agora, só acumula processos. Pelo menos é o que parece.

Ali, perto do Taiwan, grassava uma guerra horrenda no Vietnã. Desmoralizou os EUA, que entretanto deram um banho de napalm e arrasou o território vietnamita, dividido em facções antagônicas ainda antes do conflito e – após a derrota ianque e unificado – em batalha com a vizinhança, notadamente o Camboja. Num navio de carga brasileiro, Thai Nghia embarca para o Brasil, fugindo da hecatombe de sua terra natal e sem dar um “oi” em português. Após anos de trabalho e aprendizado – que culminou na elaboração dum dicionário -, o imigrante começou a fazer chinelo com pneu velho, ocupação surgida no Vietnã da guerra contra os Estados Unidos. Com algum capital de giro, fundou primeiro a Yepp, depois a Goóc, que ainda usa pneus velhos como matéria-prima das sandálias, e vende outros acessórios mais; ao lado da durabilidade caminha a aceitação, pois a empresa já exporta para outros países – e isso em poucos anos de existência. E, por enquanto, nada de moleque sugado pela lógica humana de pisasr para subir, infinitamente pior que a lógica de mercado capitalista ou a lógica burocrática socialista. Rendeu até entrevista com o gordo.

É num espírito de ceticismo que teço aproximações entre elas. Bastante pós-modernas: enquanto a Nike aposta na herança pós-industrial da economia norte-americana, a Goóc mescla consciência ecológica com maneirismos parisienses. E, em contraste com imigrantes asiáticos que vendem tênis contrabandeados – falsos, presumivelmente – por bairros comerciais de Natal, ainda não soube de lotes de sandálias de pneu reciclado em consignação numa loja de Pedro Juan Caballero. E, se nem esse ceticismo me for útil, e eu passar fome no Vietnã, quem sabe eu não faça um chinelo com papelão, para conservar as tênues marcas da desgraça e emancipação na sola do pé, e tentar subir na vida sem pisar em ninguém?

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