terça-feira, 28 de abril de 2009

"Desculpe por te alugar"

Ninguém me pergunte como é que a mulher começou isso tudo. De um simples fato banal que acabava de comentar com ela (o aperto dos horários pra chegar do campus da UFRJ no Fundão, onde faço aulas de samba de gafieira, até o IFCS, pra assistir à aula de filosofia política), ela puxou pro caso dos mendigos em frente ao Instituto, pra galera que se amassa nas dependências do prédio, pro povo que se diz (ou, inferindo do raciocínio dela, se pretende dizer) afrodescendente, pro problema das cotas - numa palavra, prum bocado de assuntos que concernem aos destinos da sociedade brasileira. Foi realmente uma enxurrada de reclamações, das quais não ousei discordar naquela hora; sem traçar uma genealogia sobre o caráter dela - uma quarentona até agradável, apesar da verborragia -, notei que ela é o tipo da pessoa irrevogavelmente conservadora em sua perspectiva sociopolítica.


Mas, para que a coisa não passe em branco como simples litania, me deixe recapitular um pouco do que ela disse. O problema com os mendigos do IFCS foi, segundo entendi - muito embora o troço já aconteça há alguns anos, antes mesmo de eu sequer pensar em cursar filosofia (tô como intercambista na UFRJ) -, que as grades não resolviam a questão da segurança, além de delinear melhor o fosso entre a condição sócio-econômica dos estudantes e dos moradores de rua, que passou a se configurar em termos espaciais; as grades restringiriam ainda mais o acesso ao Instituto. Vários estudantes se opuseram à instalação da grade (pelo menos, os que comentaram o caso quando eu tava por perto), mas ela foi na via contrária de uma forma, no mínimo, anacrônica: não só estava correta a presença da grade na frente do prédio como também os próprios mendigos são culpados por sua miséria, sua indigência e sua sujeira. Minha colega ajuntou: se querem se sujar feito porcos, por que não o fazem em casa, longe do olhar do povo? O que é privado não precisa, de acordo com ela, chegar ao público...


Quanto aos demais pontos, tô sem saco de entrar em detalhes, mas bom: o raciocínio da galera se beijando no IFCS é parecido com o dos mendigos; a objeção dela com o termo "afrodescendente" se deve ao pega-pra-capar que rola no continente africano, além de sugerir uma forte tabula rasa com as origens dos povos de lá; por fim, a bronca com as cotas étnicas, já bastante batida, é por ela representar, em boa medida, um processo discriminatório, já que os critérios são puramente subjetivos (eu, que me considero mestiço, posso tranqüilamente afirmar que sou negro ao agente do IBGE que terei direito a essa facilidade) e não se apresenta como solução efetiva das desventuras pelas quais a educação brasileira passa.

Como eu não gostaria de bater boca por nada, posso agora rebater as idéias de minha colega. Vamos pela mais banal: os amassos dos estudantes no IFCS. Como se a galera vivesse de calças abaixadas ou, pelo menos, iniciando as preliminares pelos corredores ou no pátio! Obviamente que um casal aqui ou ali pode exagerar nas carícias, mas por que o incômodo? É assim tão indecente demonstrar o afeto em público?


A recusa dela em aceitar o termo "afrodescendente", sem dúvida, geraria uma discussão acalorada, para dizer o mínimo. Mesmo concordando com ela que este é um país de mestiços (ainda que as comunidades quilombolas e os povos indígenas isolados na Amazônia constituam exceção), não vejo problemas em utilizar o termo; eu mesmo posso me considerar um, como legítimo soteropolitano e como apreciador de algumas manifestações culturais de origem africana. Além do mais, duvido muito que um afrodescendente atento homogeneize a situação dos africanos como ela pensa - muito pelo contrário, o motivo de se afirmar como descendente de povos africanos o torna solidário com os mendes, tutsis, hutus, zulus, quimbundos e tsongas, entre outros. A questão das cotas, ao que me parece, pode ser resolvida de forma menos controversa. Diante da possibilidade de falseamento de dados e do fenômeno do branqueamento ideológico, o critério pode passar de étnico para sócio-econômico ou, simplesmente, reservar uma parte das vagas a estudantes do ensino público; é o que o CEFET-RN - agora IFET-RN - tem feito há cerca de dez anos, e isso só pra mencionar o que conheço.

Por fim, voltemos ao começo do qüiproquó. Dizia ela que colocar grades na frente do IFCS estava correto; além do mais, os mendigos (é provável que eu esteja enganado, creio que se trata de moradores de rua, já que nunca os vi pedindo um vintém aos passantes) que conservassem a imundície para si mesmos - isto é, que não levassem a público o que se constitui como privado. Aí eu matuto com meus botões e digo: não será o contrário que acontece? Não será o público sucumbindo ao privado, através dos condomínios fechados, das grades e cercas-vivas que engolem as calçadas? Não estará a mesquinhez humana traçando o que lhe desejar, sem dar o menor cabimento aos demais? A estudante colega minha reproduziu, para meu tremendo espanto, um preconceito estúpido e paleolítico; é bem possível que haja indivíduos que prefiram morar na sarjeta, mas duvido muito que isso seja a regra; como também não é regra que um morador de rua, feito em Recife, passe pra escriturário do Banco do Brasil.

Pois é, caro leitor: parafraseando Millôr Fernandes em Todo Homem é Minha Caça, é desse jeito que perpetuamos a desumanidade do homem para com o homem. Mas o assunto tá chato, né? Desculpe por te alugar...

Um comentário:

Anônimo disse...

Ai..tu escreve bem demais e eu adorei ser alugada. Mas me diga uma coisa: vc falou estas coisas para a fulana sua colega?! Digo, falou pessoalmente?

rsrsrsrs

Beijão!

Baú de traças