domingo, 16 de agosto de 2009

Surrealismo, capitalismo selvagem e rock progressivo

Faz tempo que conheço essa música: baixei ela em 2006, acho. Mas só meu deu vontade de registrar impressões sobre ela agora. Antes disso, no entanto, penei pra saber que diabos Edgar Froese, do Tangerine Dream, queria dizer com "Green Desert", disco lançado em 1986 mas já pronto desde 1973. Vinha a minha cabeça uma densa floresta equatorial - tipo Amazônia, cada dia menos densa -, repleta de bichos, insetos e tudo que exige um bioma rico. Ledo engano. A última coisa que pode haver num deserto verde é diversidade: procurando no Google, o maior banco de dados já criado pelo ser humano, os termos "deserto verde" direcionaram para páginas sobre o fenômeno que denominam; arrancada a flora original, os empresários amenizam alguns efeitos, como a erosão, replantando com espécies não-nativas e de rápido crescimento, como o eucalipto (1). Daí o fiat lux: a música narrava a construção de um deserto verde; veio como os estragos que o tal deserto produz - imprevisto.

Pensei, então, o que não se deve fazer de maneira alguma com indivíduos de curiosidade mais criteriosa: explicar a canção. Seus 19 minutos e 37 segundos, característicos da onda progressiva de onde surgiu, representam uma verdadeira tragédia musical, comparável a sinfonias de Beethoven (2): movimentos distintos, cada qual apontando para um capítulo da desgraça. (Uns meses atrás, li na Wikipédia em inglês que Froese, o idealizador e único remanescente da formação inicial de seu grupo, queria fazer com a música o que Dalí fazia com o pincel.)

Os primeiros quatro, cinco minutos são o susto inicial. A bicharada, talvez imersa nos instintos rotineiros de sobrevivência, se depara com a chegada do bicho homem e se agonia, assobiando ou gritando; a atmosfera é pesada, chegando a rolar forte ventania. Esta cena foi feita apenas (!) por sintetizadores; pra quem acha que música eletrônica se resume a bate-estacas, meus pêsames. Só por ser eletrônico não significa menos criativo, e não é necessário um megalômano feito Stelarc - que, na década em que a música foi gravada, havia declarado que o corpo humano é obsoleto e precisa de máquinas para sobreviver e ter suas potencialidades melhor exploradas.

A partir daí, os trabalhos se iniciam: como que os homens levantam cercas, trazem a maquinaria pesada, separam um local para o escritório e o refeitório dos funcionários. Nada de mais; dali até Deus sabe quando, o pior ainda está por vir - independente de se implantar algo monocultor, pecuário-intenso, indústrias químicas ou de celulose. As motosserras dão seus primeiros gritos, abrindo clareiras que serão, com a ação meteorológica, substituídas por crateras mais ou menos perigosas: a bitola está nas gotas d'água e na força dos ventos.

Tudo isso, até aqui, resumido em apenas nove minutos por Froese e em dois parágrafos por mim. Fosse só isso, ainda ficava quieto. Mas é a partir dos nove minutos que a hecatombe começa a ficar interessante. A percussão tímida, elaborada com uns poucos batuques de bateria, já se ouve mais forte. É a correria crescente, tanto pela cobrança do capataz quanto pela grana investida no negócio. Os arredores ainda são dominados pelo bioma que, pouco a pouco, desaparece; chegamos aos doze minutos com a certeza de que, em não tão muito tempo, o corolário macabro se fará pronto.

E então, do décimo segundo para o décimo terceiro minuto (afora os outros intervalos que preferi não mencionar), o peso do tom-tom, caixa, bumbo e surdo já alucinam os ouvidos. O órgão grave, igualmente tímido nos momentos anteriores, também empresta sua sonoridade para a destruição que se processa inexorável. Quem mais sente tal impacto, além dos tímpanos, é a pele: impossível não se arrepiar diante de uma sensação desse gênero (3). Os alicerces de concreto, já prontos, começam a ser revestidos de tijolos, fiação elétrica, cabos da rede telemática do local. Daí a algumas semanas ou meses, cuidarão dos arremates.

Finalmente - e isso lá pelo décimo sexto minuto, quando o grosso da correria acaba -, começa uma melodia que não saberia dizer: azeda? Perversa? Não importa. Tudo limpinho, organizado: nos interiores dos galpões, claro. Ao lado, uns cercados, prontos para receberem as mudas de eucalipto. Aqui no Brasil, o Espírito Santo tá aí pra contar sua história: seu Ermínio continua à solta com a Aracruz. Cada vez que a gente pensa que presenciou tudo, aparece uma merda pra nos passar a rasteira. Basta uma leitura de Millôr Fernandes, especialmente de seu "Decálogo": um homem é exatamente o contrário do If, de Kipling. Surrealismo e rock progressivo são pra quem já tá noutra vibe.

(1) Reflorestamento (pelo menos é o que diz a Aracruz).

(2) Neste momento, Adorno se revira no túmulo. E eu regozijo com sua agonia.

(3) Desculpem o cinismo. Mas é impossível não ser cínico nessas horas.

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