segunda-feira, 11 de abril de 2011

A desgraça dos outros (1): Bolsonaro, Wellington e Eichmann

Nos últimos tempos, temos visto notícias de fatos aparentemente insólitos. Coisas que chamam mesmo a atenção da gente, atiçando ânimos, levantando surpresa... Fosse apenas pelo ânimo, estaríamos bem. O grande problema do ser humano, no entanto, é se surpreender desnecessariamente com a própria capacidade de desejar ou provocar a desgraça do outro. Lembro que li um texto de Millôr Fernandes, em Todo Homem é Minha Caça, no qual ele relata um passeio a uma casa de praia em Arraial do Cabo. Jaguar, que lhe fazia companhia então, elogiou a “pureza” do habitantes do local, pelo que foi admoestado por Millôr. Na semana seguinte, porém, essa mesma gente pura – pescadores, no caso – “transformou os pingüins numa poça de sangue” quando os animais apareceram na praia. O humorista terminou por concluir que é “por essas pequenas coisas que eu nunca perco a fé no ser humano”.

Pois bem: parece que nossa fé no ser humano está sendo posta à prova. Será que ainda acreditamos na existência de indivíduos prontos a demonstrar, de modo polido ou sanguinário, a sandice de suas atitudes e opiniões? Após participar de um quadro no CQC, o deputado federal Jair Bolsonaro, que já apareceu outras vezes na mídia por suas declarações polêmicas, avivou os miolos de milhões de telespectadores, simpáticos e aversos a sua opção política. O sujeito alega que, ao responder a uma pergunta de Preta Gil, soltou a resposta que soltou por achar que ela falaria de homossexualismo (sic). Claro que se trata de uma desculpa esfarrapada (opinião minha e de muita gente, quem achar ruim que se foda); mas, se o erro fosse mesmo genuíno, isso não traria menos nojo por ele.

Esta semana, no entanto, houve algo ainda mais hediondo, por atingir de modo mais direto a vida das pessoas. Em uma escola no bairro do Realengo, no Rio de Janeiro, um jovem de 24 anos matou 12 alunos e feriu outros 13. Conseguiu fácil acesso ao prédio por ser conhecido dos funcionários, era ex-aluno; no entanto, quando apareceu um policial (o policial não fez basicamente muita coisa, a não ser ir atrás do criminoso), se matou. Os jornais trataram de abastecer sua cota de sangue e aproveitaram para difundir uma carta que escreveu antes do crime. Nela, Wellington (o nome dele) lança umas reprimendas dignas de um fanático religioso qualquer, o que, aliado ao fato de ter “estudado” um pouco do islamismo, bastou para ser tachado de fanático religioso. E aí é pior: não sendo suficiente a própria chacina, ainda metem a religião no meio!

Quando comecei o curso sobre cinema e educação quinta passada na UFRN, os professores mencionaram o caso de Adolf Eichmann, oficial nazista e principal responsável pela Solução Final do regime durante a Segunda Guerra. Já havia ouvido falar no livro de Hannah Arendt sobre ele, mas só então tomei vergonha na cara pra baixar e apreciar o material. O ponto é o seguinte: os juízes se recusavam a acreditar que um indivíduo responsável por tamanha mortandade só se expressasse em clichês, preferindo acreditar que ele escondesse a verdade de propósito. Não acreditavam que o único idioma dele fosse o “oficialês”.

Na verdade, NINGUÉM espera esse tipo de coisa – pelo simples fato de que não aprende a esperar. O ser humano está perdendo, pouco a pouco, duas capacidades: a curiosidade para o inusitado e o sangue-frio necessário a momentos em que o inusitado arranca o couro fora. E nem precisa ser estudante de filosofia para atentar a essas coisas: basta ter um pouco da fé no ser humano a que Millôr aludiu em seu texto. Millôr era humorista. NINGUÉM espera um tiroteio desenfreado e gratuito (1) numa escola ou shopping center (como aconteceu na Holanda uns dias atrás), como NINGUÉM espera uma declaração hostil como a de Bolsonaro.

Mas, peraí: dizer que NINGUÉM espera não é nivelar por baixo, esquecer que alguém consegue pelo menos adivinhar uma causa plausível? Ora, há inúmeros Bolsonaros em potencial pelo mundo afora, dando apoio ao Bolsonaro que está na Câmara dos Deputados: não sem razão, cerca de 84% das pessoas que votaram numa enquete acerca das bravata dele lhe deram razão. Por outro lado, o que fizeram na imprensa acerca de Wellington não é senão uma genealogia barata (2): comentando da carta dele, se esquecem de recuar mais atrás na trajetória do jovem, como era o relacionamento familiar dele, como foi na escola – e como surgiram a atual estrutura familiar e sistema educacional dentro dos quais ele cresceu. E o mesmo vale para Eichmann. Há uma teia de idéias e práticas circulando pra lá e pra cá, e que mantém firmes as condições normais de temperatura e pressão para a ocorrência dessas atrocidades.

Em linguagem de gente: nada disso acontece por acaso. Não é sem razão que houve o que houve. Parece tautológico; e é, na verdade. Mas não deveria ser, pois poderia ser conosco do mesmo jeito – ou pior. Ainda assim, continuamos a pensar que algo assim não pode nos acontecer. Espero que o caldo não engrosse demais até mais gente mudar de idéia. No entanto, só me resta manter a fé no ser humano mesmo...

(1) Palavreado clichê usado pra rotular algo de que não conhecemos a causa.

(2) A primeira aparição do termo “genealogia”, salvo engano, foi na obra de Nietzsche Genealogia da Moral. Foucault elaborou um pouco mais e criou sua “arqueologia” (A Arqueologia do Saber).

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