Natal tá uma zona, gente! Dia 16 último, foi inaugurado um monumento à Bíblia; rolou um show do Diante do Trono e Micarla de Sousa aproveitou o embalo pra oferecer demonstrações públicas de religiosidade, declarando seu ingresso na Igreja Tal. Mas não se preocupem, não vou gastar meu tempo partindo desse evento pra descer a lenha na gestão municipal; já há muita gente que o faz melhor que eu (inserir link pra Carta Potiguar). Do nada, me lembrei de um figuraço da literatura russa: Rodion Raskólnikov (1).
Resumir o
bras de literatura é um saco, mas que se lasque. Raskólnikov, do Crime e Castigo de Dostô, se propôs um experimento simples. Partindo da suposição de que homens como Napoleão e Licurgo eram extraordinários a ponto de passarem por cima de qualquer coisa – mesmo que isso implicasse preparar um sarapatel à base de espadas e baionetas –, o jovem professor, cheio de dívidas e atormentado com as cobranças de aluguel de sua senhoria, matou ela (2) e caiu fora. Começou uma série de investigações, e ele refletiu seriamente sobre o que fez. Decidiu se entregar, não por se arrepender de matar a velha, mas por não obter o resultado que desejava: Raskólnikov não matou um ser humano, mas um princípio, um PIOLHO – diferentemente de Licurgo e Napoleão, que pavimentaram a história ocidental usando cadáveres.
Consegui fazer algo pior que resumir a trama: entreguei um dos problemas nevrálgicos que a constroem. Mas tenham um pouco de paciência, gente!
Vamos supor, então, que Rodion Raskólnikov estivesse em Natal. Que estivesse num puxadinho construído na gestão de Micarla de Sousa, com suas contas pra pagar e o mesmo nível de sandice. O cara é protestante, assim como a prefeita e o Diante do Trono, mas, à semelhança de sua contrapartida russa, não liga muito pra orações; há muito tempo que não reza, na verdade. Ele não tá nem aí pro cenário político local, só está puto da vida com uma mulher que manda e desmanda do jeito mais picaresco possível; quer se livrar dela pra ontem. Enche os nervos ao assistir às propagandas da gestão com a mesma facilidade que encheria ao ver a senhoria batendo na meia-irmã. Aí ele dá um jeitinho, bola um plano extraordinário, baseado na mesma teoria extraordinária... E agora, Rodion Raskólnikov? Você mata ou não mata Micarla de Sousa?
Você, que está lendo agora, antes de responder, peço perdão pelo trocadilho político-literário. Micarla de Sousa, a borboletinha de Natal. O perdão, obviamente, é pelo mau gosto, não pelo trocadilho em si. Pois, se você responder que não, que Micarla de Sousa é um inseto e que, por isso, não valeria a pena Raskólnikov matar essa mulher, eu tratarei de chamar sua atenção para o outro lado do trocadalho (3). Micarla não seria um mero inseto, e a própria imagem da borboleta a favoreceria nesse sentido; ela usa e abusa da paciência dos natalenses, mas parece que ainda dá um jeito de varrer a sujeira pra debaixo do tapete – diferentemente da senhoria no romance de Dostoiévski, que mal conseguia esconder seu temperamento repugnante. Sendo assim, ela seria um ser humano extraordinário “em potencial”; portanto, o assassinato estaria justificado, e para isso bastaria apenas o fato de ela ser um ser humano, mesmo que não fosse extraordinária e muito menos tivesse o potencial.
Não sei se vou saber de sua resposta, mas a minha é a seguinte: nem um “sim” nem um “não” responderiam a essa pergunta de modo satisfatório. É claro que estou supondo que você aceite minha tese, que eu realmente acho a gestão de Micarla de Sousa uma merda (e acho mesmo); é ainda mais claro que não desenvolvi o experimento mental de modo mais evidentemente político, admitindo até que Raskólnikov estivesse cagando e andando pra esse cenário.
No entanto, a meu ver, a força da pergunta que abre esta postagem reside em si própria. É muito fácil dar uma resposta afirmativa ou negativa, quando na verdade o problema se mantém aberto, a despeito da persistência em uma das duas alternativas. Ora, no terreno literário como no político, não há simplesmente DUAS alternativas; há ao menos TRÊS. A primeira alternativa, não matar Micarla de Sousa por ela ser um inseto, não se sustenta pelo fato de ela não ser um mero inseto; persistir nessa idéia dá mostras de uma subestimação da figura política que ela representa e dos desastres que cometeu enquanto tal. A segunda alternativa, matar Micarla de Sousa por ela ser um ser humano qualquer, aponta para um notável cenário de autoritarismo. Quem garante que o assassino não possa fazer pior? E uma terceira alternativa (que certamente está longe de ser a única) seria manter a atitude de suspensão, sem afirmar ou negar. Deveríamos aprender a escolher bem nossos dirigentes, abrir os ouvidos para o canto de Circe que às vezes os indivíduos entoam no momento da propaganda política, seja ela dentro ou fora da época eleitoral. Já vi um ex-colega de colégio afirmar que votou em Micarla de Sousa por comprar o peixe – isto é, o marido, os filhos, a imagem de mãe casada e trabalhadora; ele se mostrou arrependido, mas parece que seu remorso não foi além de mera birra (isso já é viagem minha, mas não duvido dessa possibilidade). Chorumela política, assim isolada, não parece grande coisa; mas basta lembrar a segunda vitória de George Bush nas eleições presidenciais nos Estados Unidos em 200, quando milhões de norte-americanos pediram desculpas a seus compatriotas!
As investigações em torno da improbidade administrativa de Micarla já estão rolando, e qualquer sinal positivo nessa direção pode fundamentar um processo de impeachment contra ela. Mas a pergunta continua mantendo sua validade. E é bem simples manter o experimento mental: substitua Rodion Raskólnikov por você mesmo e Micarla de Sousa pelo gestor político indecente de sua preferência.
(1) Já leu Crime e Castigo? Não se preocupe, também não vou pagar pau e gastar meu tempo demonstrando a erudição que não tenho.
(2) Matei a gramática prescritiva, com seus Pasquales e Sacconis, e não tô nem aí. Sou extraordinário?
(3) Do carilho.
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