Hoje de madrugada, no Facebook, vi o link pruma postagem na Carta Potiguar. A bola da vez era o protesto de Aliaa Elmahdy, uma estudante egípcia de 20 anos que está por ter o couro arrebentado pelo chicote após tirar uma foto pelada e publicar em seu blog. Tá bom, eu tô sensacionalizando: se trata de uma foto artística (ou pelo menos pretende ser), usando meias e sapatilhas e adornada com um broche, docemente erótica. A foto em questão, porém, está longe de ser a única parte provocante: a postagem inteira é um tiro de fuzil na sociedade egípcia, com um desenho nu e fotos de atividade sexual (!). Ainda no início da postagem, abaixo de uma segunda foto mais discreta (tirada do busto, os cabelos molhados, a expressão de quem foi surpreendida em sua intimidade), o recado básico: "Levem a julgamento os modelos de artistas que posaram nus para as escolas de arte até o início da década de 70, escondam os livros de arte e destruam as estátuas de nus da antigüidade; depois tirem suas roupas, fiquem de frente para o espelho e queimem seus corpos que tanto desprezam para se livrar de seus complexos sexuais para sempre, antes de dirigirem a humilhação e chauvinismo e ousarem me negar a liberdade de expressão".
(Neste EXATO momento (1), me lembrei de uma informação sobre Orígenes (que vi de passagem numa das cartas de Rubem Alves, no E aí? Cartas aos adolescentes e aos seus pais), um dos patriarcas do cristianismo católico, que teria castrado a si mesmo pra livrar de vez o corpo das tentações.)
O quê? Tá espantado com aquele monte de muçulmanos fanáticos, promovendo o linchamento físico e moral à Lolita egípcia? Não se engane: os setores seculares também a criticaram, afirmando que sua atitude "serve apenas para denegrir os ideais liberais". No Facebook dela, engraçado: ela também se define como liberal. Ah, mas que sabem os árabes do liberalismo? Eu não tenho a menor idéia, e meus conhecimentos a respeito dessa doutrina ainda são esparsos, resumidos a leituras en passant de verbetes sobre filosofia política e uma leitura superficial de Uma teoria da justiça, o grande compêndio do liberalismo político de John Rawls. Pretendo ler um pouco mais a respeito, já que um de meus interesses acadêmicos é filosofia política; preciso me apropriar de toda essa galera - Locke, Hobbes, Rousseau, Hegel, Hayek, Rawls, Dworkin e o diabo a sete - pra depois sentar o malho.
Mas voltemos à postagem da Carta Potiguar. O texto, muito bem escrito, é um verdadeiro elogio ao engajamento político, no Egito ou onde quer que seja. Fiquei surpreso pela ausência de comentários ofensivos, talvez por ter sido publicado anteontem. Talvez porque o público leitor seja simpático à linha política da revista. Talvez porque estejamos em um país democrático, onde tradicionalmente a liberdade de expressão tem sido um de seus pilares principais. Talvez seja bom eu voltar ao liberalismo, que começou a construir a democracia tal como a entendemos hoje em dia, e parar com toda essa baboseira melíflua. Ora, o liberalismo gosta de querer resolver as coisas de maneira "suave", "justa", dando às partes envolvidas na disputa o direito de defenderem seu ponto de vista sem ter que se agredir (mais do que já se agrediram, lógico). Pode ler lá no Sobre a liberdade, de Stuart Mill, quando ele fala sobre intolerância. Na época em que foi escrito, por exemplo, ateus não tinham direito à defesa em tribunais. (Depois eu verifico a informação correta, estou realmente com preguiça de ir ao texto.) Vamos, gente, sejamos generosos para com aqueles que não partilham de nossa opinião! Será mesmo que estamos certos? E mesmo que estejamos, que mal faz ouvir o argumento alheio? Quer dizer, aparentemente era isso que se esperava dos setores seculares no Egito em relação a Elmahdy. Mas não foi o que aconteceu. Ainda embarcando nos trilhos (?) de Mill, poderíamos dizer que o liberalismo no Egito ainda não se amadureceu o suficiente (nem o liberalismo nem a democracia, que só existe de fachada), e assim não poderíamos esperar deles que fossem solidários à garota (2).
Sei lá a quantas anda o liberalismo no Egito, já disse. Só digo duas coisas: Marcha das Piranhas (que o povo prefere traduzir como "Marcha das Vadias").
Ué, não entendeu o recado? Pra bom entendedor, duas palavras bastam. Tá bom, tá bom, vou desenvolver a conexão. Pois bem, aquele policialzinho dizendo que parte do perigo de as mulheres serem estupradas está na roupa que vestem... ou melhor, que NÃO vestem. Se vestem feito putas. Aí foi aquela mobilização, marchas pelas DEMOCRACIAS afora, as MULÉ vestindo pouca roupa e açulando o policialzinho que existe dentro de cada um. Vamo lá, porra, não quer comer meu cu aqui agora? Isso porque o Canadá é uma democracia, gente!
E depois desse fluxo de consciência, você fica me perguntando: que tem uma coisa com a outra? Porque eu saltei de Aliaa Elmahdy, abri um parênteses - ui! - pro liberalismo, e cabei parando em Toronto. E ainda não ficou claro? Tá bom, eu esclareço. Em primeiro lugar, depois de ler o texto da Carta Potiguar, saí à cata de mais informações sobre a garota. Todo o fuzuê já chegou tarde; a postagem dela data de 23 de outubro último. É a única, aliás, e não deve ser difícil presumir o porquê. Fiquei pensando se seria por causa das fronteiras lingüísticas, já que o blog é em árabe, ou se foi porque a repercussão foi lerda. Um mês é bastante tempo pra um rebuliço desses chegar ao conhecimento mundial, e isso apesar da solidariedade de milhares de pessoas pelo mundo e o apoio de militantes árabes fora do Egito. Em segundo lugar, ambas as situações - a ousadia de Elmahdy e o descaramento do policial canadense - apontam para o grande problema que é a violência contra a mulher, onde quer que seja. E, coincidentemente, ambas tiraram a roupa pra chamarem a atenção, pelo direito de andar por aí ou publicar uma idéia sem ser molestada por isso. Elmahdy, atéia convicta, foi ainda mais longe; num país muçulmano de importância histórica notória, botou em prática aquele preceito de Jesus, dando a César o que é de César - um tapa na cara. E isso não é nada perto dos tapas que as mulheres têm levado pelo mundo afora (veja você a novela Fina Estampa, por exemplo) - quando não são estupradas, mortas pelo marido, irmão ou pai. Em terceiro lugar, deixo vocês com essa irlandesa da voz linda e de letras bacanas que conheci esses dias, Sinéad O'Connor. Segue abaixo o clipe de "Fire on Babylon", dirigido por Michel Gondry. A letra fala sobre violência infantil, mas quem disse que não pode valer para as mulheres?
(1) Força de expressão.
(2) Em Orientalismo, Edward Said lembra que Stuart Mill afirmou que a teoria em seu livro não poderia se aplicar à Índia "porque os indianos eram inferiores em termos de civilização, se não de raça" (p. 26). Ou seja, além do liberalismo, ainda tem o etnocentrismo: os indianos e egípcios ainda terão sua hora na aurora da civilização contemporânea.
Nenhum comentário:
Postar um comentário