segunda-feira, 13 de abril de 2009

Vida longa à livre distribuição 2

Mas será possível? (1) Algum tempo depois de outra postagem, dou uma vasculhada num ótimo banco de dados com textos de Jacques Derrida (cf. na lista Desterritórios aqui ao lado), e o que acontece? Neca de pitibiribas. Horacio Potel, professor de filosofia na Universidad Nacional de Lanús, Argentina, está passando por maus bocados após sofrer um processo por parte da Cámara Argentina del Libro. A Cámara, por sua vez, atendeu a um pedido das Éditions de Minuit, editora francesa responsável pela publicação de diversos títulos do pensador francês (2). Eles alegaram que o prazo para a difusão da obra dele no domínio público não havia acabado, daí a ação legal (!!!) movida contra Potel.

Vejamos bem: como você deve ter percebido, não gostei nem um pouco da notícia. Mas, agora, não se trata apenas de franca desobediência civil. A coisa toma uma dimensão mais, digamos, filosófica - embora não naquela acepção abstracionista, algo platônica - muito embora Derrida tenha uma escrita bastante circunvolumétrica, cheia de tortuosidades que podem assustar o estudioso apressado.

Ele (3) legou à filosofia contemporânea uma extensa crítica da metafísica tradicional, e entre seus alvos se encontram Platão, Rousseau, Heidegger... (Mas prefiro pensar, na esteira de Richard Rorty, que sua tentativa de superar a tradição filosófica não foi e nem poderia ter sido possível.) Entre as palavrinhas mágicas que criou - diferensa, phármakon, disseminação... -, "escritura" parece mais apropriada para meus propósitos de análise. Grosso modo, escritura se refere tanto à linguagem quanto a suas "condições de possibilidade" (o contexto histórico, social, cultural etc.); daí, ele fala, na Gramatologia, da existência de diversos tipos de escritura - militar, política, cibernética... Esta, por sua vez, está intimamente ligada ao que Horacio Potel fez. O fato é o seguinte: o que a palavra escritura marca - a linguagem e suas "condições de possibilidade" (os especialistas que me perdoem a expressão, não consigo achar outra mais apropriada) - não é, de forma alguma, absoluto, definitivo ou estável. A escritura é mais que água: escapa por entre os dedos, olhos, ouvidos (4) e quaisquer tentativas de rígida manipulação conceitual.

Não será esse, portanto, o caso do professor Potel? Melhor dizendo, não estará ele agindo de acordo com o pensamento de Derrida, implementando a escritura através da livre difusão dos textos? Ora, a Internet é, hoje em dia, a escritura par excellence; sua arquitetura permite, como nenhuma outra tecnologia o fez, a reproduçao ininterrupta e flexível de idéias. Obviamente que nem todo internauta é bonzinho - do contrário, não haveria crackers, pedófilos e trolls chutando o pau da barraca por aí; o problema, no entanto, é que a mesma lei que se encarrega - e mal - de combater essa galera também atrapalha o trabalho de indivíduos como Potel, que não ganhou um centavo com isso e corre o risco de desembolsar um valor absurdo com os direitos autorais simplesmente por facilitar o trabalho de outros pesquisadores como ele (5). Livre distribuição significa isso: reformar essa espelunca legislativa que entrava o acesso a materiais preciosos de pesquisa ou de simples entretenimento, quase sempre onerosos e fora do poder aquisitivo de uma porrada de gente por aí - ou, o que não é menos importante, oferecer mais uma alternativa de busca.

(1) Claro que é, senão não teria uma boa razão para escrever esta postagem - a não ser que desejasse tentar uma carreira tabloidista...

(2) Na verdade, era argelino; embora escrevesse tão bem o francês quanto Émile Zola ou Gilles Deleuze, quando falava se deixava transparecer como um estrangeiro. O homem sofreu na Argélia por ser judeu, ainda tinha nego tirando onda com o sotaque dele, e depois aprontam uma com sua obra...

(3) Derrida, não o estudioso apressado.

(4) Entre outras coisas, escritura também serve à crítica do fonocentrismo - a tendência, no pensamento ocidental, de privilegiar metáforas sonoras às escritas. Um ótimo texto para se perceber isso é A farmácia de Platão, no qual Derrida desmonta minuciosamente o uso que Platão fazia do vocábulo phármakon - traduzível por "veneno" ou "remédio", às vezes (e isso é uma das teses do ensaio de Derrida) intraduzível por apenas um deles, mantendo uma tentadora e inevitável ambigüidade.

(5) E eu, por falar - ops, por escrever! - nisso.

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